Eu posso perdoar?
- Lívia Cantisani Shumiski
- 30 de mai. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 10 de set. de 2020
Uma reflexão sobre o perdão com a ajuda de Corrie ten Boom.

Já faz alguns anos que salvei o seguinte relato nas notas do meu celular como um lembrete sobre o perdão. Preciso ler vez após vez.
“Aprendendo a perdoar por Corrie ten Boom
Foi numa igreja em Munique, onde eu estava pregando em 1947, que de repente, o vislumbrei: um homem calvo, troncundo vestindo um sobretudo cinza, com um chapéu de feltro marrom amassado entre as duas mãos. Num instante, estava enxergando o sobretudo e o chapéu marrom; no instante seguinte, o uniforme azul, o quepe estampado com a caveira e as duas tíbias cruzadas, o rosto malicioso, lascivo, debochado.
Minhas lembranças do campo de concentração voltaram com rapidez e impacto: a sala enorme com as severas luminárias no teto, a pilha patética de vestidos e sapatos no centro, a vergonha de ter de passar nua diante desse homem. Pude ver o vulto frágil da minha irmã à minha frente, costelas quase furando o fino pergaminho da sua pele.
Betsie e eu havíamos sido presas por termos escondido judeus na nossa casa por ocasião da ocupação nazista da Holanda, durante a Segunda Guerra. Esse homem fora um dos guardas no campo de concentração em Ravensbruck, para onde fomos enviadas.
Agora, ele estava diante de mim, mão estendida: "Que bela mensagem, fräulein! Que bom saber, como disse, que nossos pecados estão no fundo do mar!"
Pela primeira vez, desde minha soltura, eu estava frente a frente com um dos meus algozes, e meu sangue parecia ter congelado.
"Você mencionou Ravensbruck na sua palestra", ele dizia. "Fui guarda lá. Mas depois disso", continuou, "tornei-me cristão. Eu sei que Deus me perdoou pelas coisas cruéis que cometi lá, mas eu gostaria de ouvi-lo da sua boca também. Fräulein", com a mão estendida outra vez, "você me perdoa?"
Fiquei ali paralisada. Eu não podia fazer isso. Minha irmã Betsie morrera naquele lugar; será que ele podia apagar sua morte terrível e prolongada, simplesmente porque pedia perdão?
Eu achava que já perdoara a todos; pregava sobre isso por toda a parte. Eu, o exemplo de perdão, não conseguia perdoar quando encarava meu ofensor em carne e osso.
Não podem ter passado mais do que alguns segundos, ele em pé com a mão estendida - mas para mim parecia uma batalha de horas, enquanto eu enfrentava a coisa mais difícil que tive de fazer em toda a minha vida.
Eu não tinha opção - eu sabia disso. A mensagem do perdão de Deus possui um pré-requisito: que perdoemos a todos que nos feriram. "Se não perdoardes aos homens", afirmou Jesus, "tão pouco vosso Pai vos perdoará as vossas ofensas" (Mateus 6.15)
Ainda assim, lá estava eu com o coração dominado por frieza. Entretanto, perdoar é um ato da vontade, e a vontade pode funcionar indiferentemente da temperatura do coração. "Jesus, ajuda-me", supliquei silenciosamente. "Eu posso levantar minha mão. Pelo menos isso posso fazer. Dá-me o sentimento depois."
Então, sentindo-me um robô, coloquei minha mão mecanicamente na mão que me estava estendida. E, enquanto o fiz, algo incrível aconteceu. Uma corrente começou no meu ombro, correu pelo meu braço e saltou para nossas mãos unidas. Em seguida, esse calor restaurador parecia inundar todo o meu ser, trazendo lágrimas aos meus olhos.
"Eu te perdôo, irmão", exclamei, "com todo o meu coração!"
Por um longo instante, seguramos a mão um do outro, o ex-guarda e a ex-prisioneira. Posso dizer que nunca experimentei o amor de Deus de forma tão intensa como naquele momento.” [1]
Leio e releio. E conhecer a história de Betsie e Corrie ten boom ainda me causa maior impacto diante deste relato de perdão.
É inevitável pensar “será que eu seria capaz de perdoar assim?”.
A verdade é que diante da ofensa, diante das feridas, diante até mesmo das mínimas frustrações que nos são causadas, nossa tendência é endurecer nosso coração em nossos direitos.
“Eu fui magoada, eu fui desrespeitada, eu fui traída”. É nosso desejo de ver alguém pagar o custo por aquilo que nos foi feito falando bem alto.
Não é fácil perdoar. Não é nada fácil abrir mão e dizer “eu te perdoo”.
Por que?
Quando somos ofendidas, nos encontramos como que em uma bifurcação entre o caminho da graça e o caminho dos direitos.
O caminho dos direitos me diz que alguém precisa pagar o preço pelo pecado que foi cometido contra mim. Alguém precisa sofrer, mesmo que seja minha indiferença e minha falta de perdão. Este caminho me mantém no centro, e gera isolamento e amargura. Porque mesmo que alguém pagasse o preço que desejo, ele nunca seria suficiente para trazer paz ao meu coração.
É possível viver uma vida toda na amargura da falta de perdão. Porque meu desejo de punir nunca será satisfeito. Então,
além da amargura tomo um caminho de cinismo e profunda desconfiança. A amargura cria raízes e mina meus relacionamentos.
Só há um remédio para a amargura, o caminho da Graça. Da Graça de Deus em Cristo.
Nós ofendemos a Deus com nosso pecado. E somente Deus tendo pleno direito de cobrar o preço por ser ofendido, porque é impossível que Deus peque, Ele mesmo pagou o preço punindo Seu Filho por nossas ofensas.
Você compreende? Nossas ofensas.
Enquanto ainda éramos inimigos de Deus. Enquanto ainda éramos pecadores, Deus nos perdoou em Seu Filho Jesus. Nos dando por meio da fé, por pura Graça, o direito de sermos aceitos, perdoados de uma vez por todas. Não apenas por um de nossos pecados mas por todos eles.
Escolher, portanto, o caminho da Graça é simplesmente tomar sobre si a Graça que recebeu e estender ao outro. Não porque merece, mas porque Deus é gracioso e perdoa pecadores como nós.
Escolher o caminho da Graça é obedecer mesmo sem sentir, mas experimentar da grande liberdade de amar porque Cristo nos amou primeiro.
Diante da Cruz, que expõe nossas grandes ofensas, não há justificativas para não perdoar. Porque fomos grandemente perdoados.
Cada um responderá a Deus segundo seus atos. Não cabe a nós cobrarmos, cabe a nós perdoarmos. Deixe que Deus seja Deus. Deixe que a misericórdia de Deus sobre você estenda raizes de paz e não de amargura.
Corrie ten Boom estava diante de seu algoz. Ela esteve em um campo de concentração nazista nas mãos daquele homem e viu sua querida irmã morrer.
Corrie só foi capaz de perdoar porque Cristo derramou Graça sobre sua vida. Porque ela escolheu lembrar dessa Graça. Porque apesar de ser difícil, em Cristo, perdoar não é só possível, mas é uma escolha e pode ser agora.
“Perdoem como o Senhor lhes perdoou.” Colossenses 3.13
Como o Senhor te perdoou?
Vá e faça o mesmo.
[1] Testemunho publicado originalmente na revista "Guideposts", 1972. A história de Corrie ten Boom foi relatada no famoso livro (e filme) "Refúgio Secreto", de John e Elizabeth Sherrill, Editora Betânia.)
Você também pode ouvir este texto aqui:
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